terça-feira, 17 de abril de 2018

A democracia como religião


Foi Aldous Huxley em sua fábula futurista “Admirável Mundo Novo”, que sugeriu que o que chamamos de um axioma - quer dizer, uma proposição que parece autoevidente e por isso, aceitamos – pode ser criado para um indivíduo e para um ambiente determinado pela repetição, milhões de vezes, da mesma afirmação. Para este efeito -a gênese artificial de axiomas e dogmas – propõe o uso durante o sono, um mecanismo repetitivo de falar sem interrupção ao nosso subconsciente, capaz, durante horas, de receber e assimilar toda a mensagem.

Este projeto está, hoje, ao final de meio século, muito próximo da realidade, embora não sejam exatamente as mesmas técnicas, como o próprio Huxley enfatizou em seu "Retorno ao mundo feliz".

A realização mais importante neste sentido através de métodos de saturação mental pelos meios de comunicação de massa tem sido, em nosso tempo, o estabelecimento em uma escala universal do dogma-axioma da democracia. A partir dessa noção, em seu sentido individualista e majoritário, foi possível fazer a pedra angular da mentalidade contemporânea. Ou seja, o que Kendall e Wilhelsenn chamaram de “ortodoxia pública” do nosso tempo. Esta expressão significa para esses autores, o conjunto de bases conceituais ou fé em que se assenta cada sociedade histórica, elementos que são, por sua vez, as ideias-forçcas para os seus membros e pontos de referência para ser entendido na mesma língua e convergir, em último extremo, em alguns axiomas e dogmas que somente os marginalizados ou extravagantes exigiriam questionar.

A consolidação do dogma da democracia e sua axiomática tem sido, é claro, obra de muitos anos, mas é agora que ela conhece sua validade universal. Já no final dos anos 1920, assumiu-se na linguagem política espanhola, que, através da ditadura do general Primo de Rivera, era obrigado a “retornar à normalidade constitucional (ou democrática). Hoje assume-se para o mundo todo, desde a Europa mais culta até a selva africana, que apenas uma eleição “livre” (de sufrágio universal) pode justificar um governo ortodoxo. Qualquer outro governo receberá o rótulo de “ditadura” e convocarão cruzadas contra ele como um violador de “direitos humanos”, que constituem a apelação final, que em outros tempos ficava no juízo de Deus Único e Trino. (Há, naturalmente, certas tolerâncias ou concessões em favor da perfeição universal do quadro: o mundo soviético ou sovietizado e os inúmeros sultanatos árabes desconsideram qualquer consulta à “opinião pública” e eles se autointitulam "popular" ou "democrático" para gozar de suficiente imunidade”.


Não é necessário lembrar que o conjunto dos princípios que formam a ortodoxia democrática está longe de ser a evidência de seus axiomas. Além disso, penso que chegará um momento em que os homens ficarão espantados de que o governo dos povos - e a educação de seus homens - tenha sido confiado ao sistema de opinião de maioria. Alguns desses princípios são do calibre epistemológico que podem ser vistos nas seguintes afirmações:

·         O poder nasce da vontade geral e não reconhece outra origem ou títular.
·         A Vontade Geral se identifica com a opinião pública em um dado momento.
·         O voto de todos os cidadãos tem o mesmo valor.
·         O conteúdo dessa opinião é expresso em nomes de candidatos e partidos e seus slogans eleitorais.
·         Os partidos e seus meios de comunicação são os arquitetos dessa opinião.

Daí, o corolário obrigatório: as técnicas de publicidade e influência subliminar (o condicionamento dos reflexos, em suma) será o que governa os povos.

No entanto, esta série de enormidades que constituem a "ortodoxia pública" da democracia foi admitida até mesmo pela Igreja oficial do nosso tempo. Assim, quando no Brasil, ou em qualquer outra democracia, grupos teatrais representam espetáculos sacrílegos ou blasfematórios com subsídio do governo, os prelados, em sua maioria não dizem nada, porque a sua intervenção poderia ser interpretada "como uma restrição à liberdade de expressão dos cidadãos” E aqueles que protestam não o fazem em nome e pela honra de Deus, mas porque "tais espetáculos ofendem a maioria católica do povo brasileiro". Isto é, em nome da democracia e pela sua defesa.

Assim também, quando as organizações entituladas como católicas protestam contra a secularização da educação formal e contra as leis de violação do ensino privado religioso, eles não fazem porque a educação no país católico deve ser católica para todos (com as exceções devidas aos irreligiosos ou de outras religiões). Eles se limitam a defender assentos confessionais dentro da grande democracia que formamos, isto é, defender o direito dos grupos católicos que desejam ter escolas confessionais.

O espírito da democracia liberal penetrou a tal ponto na mentalidade de hoje e sua "ortodoxia pública" que quem se atreve a declarar que não é democrata ou contrário à democracia ressoa nos ouvidos como uma apostasia expressa ou blasfêmia. Muitos católicos que recusam o rótulo de socialista, ou divorcista, abortista ou até mesmo lutam contra estas ideias – não ver nenhum inconveniente em se declarar democratas ou liberal e militar em partidos sob estas denominações.

No entanto, uma vez admitida a Vontade Geral como a única fonte da lei e do poder - e negada qualquer outro instânciao imutável de religião - que lógica pode ser oposta à socialização de bens ou ensinamentos, a ruptura do vínculo matrimonial, as práticas abortistas ou a eutanásia, se tais projetos ou supostos direitos aparecem no programa do partido majoritário? A democracia moderna, com seu aspecto equívoco e aceitável, é, na verdade, a chave e a porta para todas as aberrações e aquelas que as seguirão.

E, no campo de males, como nos bens ou valores, há uma hierarquia que podemos estabelecer sem recorrer por meio de negação, as Tábuas da Lei. Assim, vemos que a socialização dos bens ou do ensino se opõe ao sétimo mandamento (não roubr) e ataca diretamente a família, instituição de origem divina; o divórcio se opõe a essa mesma instituição e, geralmente, ao nono mandamento (não desejar a esposa do próximo); aborto e eutanásia ameaçam o quinto mandamento (não matar) ...

Mas a própria raiz da democracia moderna se opõe ao primeiro e principal desses mandamentos, aquele que os outros são reduzidos: "amarás o Senhor, teu Deus, acima de todas as coisas". Advogam a secularização da sociedade (negando uma fundação religiosa) e derivar a lei apenas da convenção humana equivale a cortar os laços da sociedade humana com Deus, é negar a religião (ou religação do homem com o seu Criador). As transgressões desses outros mandamentos podem, em alguns casos, ser pecados de fraqueza: mas, somente a transgressão desse é pecado de apostasia.

Daí o martírio aceito sem hesitação pelos primeiros cristãos na Roma imperial. Eles desfrutaram em seu tempo de uma situação de "liberdade religiosa"; isto é, eles não foram condenados por praticar sua adoração. Um status semelhante ao concedido pela democracia moderna às confissões religiosas, embora com um fundamento diferente. Os romanos admitiram em seu politeísmo a todos os cultos e divindades. Eles não teriam nenhum inconveniente em admitir o Deus cristão entre as divindades do Capitólio e livremente autorizar o culto cristão. Mas com a condição de os cristãos reconhecerem, pelo menos tacitamente, o politeísmo e adorarem o imperador como símbolo e garantidor da religiosidade oficial. E aqueles cristãos que se mostravam bons cidadãos preferiam a provação e as feras do circo antes de negar a singularidade do verdadeiro Deus.

Situação semelhante é a dos católicos dentro de um país da Cristandade antes da aceitação voluntária da democracia moderna. Com a circunstância agravante de que aqui o status de liberdade não é baseado em uma concepção diferente de religião, mas em uma negação de toda religião, que é considerada como um assunto privado ou opinião. Não é mais uma religião falsa, mas um antropocentrismo ou culto ao homem. Hoje não devemos reconhecer o imperador como deus, mas a Constituição. Certamente, esse reconhecimento na forma de adoração não é exigido de maneira tão retumbante na democracia, e o caso se presta a interpretações ou "acordos de consciência". Mas essa aceitação não é requerida ou formulada, mas um ato voluntário através da adesão ao sistema ou a um partido, o caso é objetivamente mais sério do que para os cristãos de Roma.

Esses reconhecimentos também se opõem às duas primeiras petições que formulamos no Pai Nosso, a oração que o próprio Cristo nos ensinou: "Santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso  reino”. O democrata liberal os substitui implicitamente (ou explicitamente) por "eliminado seja o vosso nome; vem a nós a secularização, o reino do homem”. E eles se opõem, em suma, aos últimos dois ensinamentos que Jesus Cristo Nosso Senhor nos deixou em sua vida mortal antes de ser levado à tortura: quando perante a autoridade civil (Pilatos) e diante do religioso (Caifás) afirma a Verdade e a autoridade de origem divina.

A democracia liberal aparece assim, em sua verdadeira luz, como a fronteira do mal; aquela linha de demarcação que, transcendida, nos coloca fora "daqueles que pertencem à Verdade"; isto é, no reino daqueles que, por aclamação popular, obtiveram a morte de Cristo. O reino no qual não se fala mais em verdade e autoridade, em mas opiniões e pessoas. Em que os crentes nele só pedirão assentos no seio do pluralismo secular para viver pacificamente sua fé em uma apostasia imanente.

Mas acontece que a negação de Deus traz como inevitável corolário a negação do homem: o que pode ser construído na cidade humana na areia movediça da opinião e do sufrágio? O que deixará para trás a sociedade democrática em que o homem só serve a si mesmo? Eliminado na raiz do Supremo Fim e a religação com Ele? Quanto durarão os fins subordinados  e uma vida que não conduza ao marasmo do tédio e dos vícios acumulados? Já é a sociedade que temos diante de nós, eminentemente nos países economicamente mais desenvolvidos: a sociedade em que há abundância de meios de subsistência, mas há uma falta de razão para viver.

"Os povos, as civilizações, foi dito, são como estranhas naves que fundam suas âncoras no Céu, na Eternidade". A democracia liberal está consumando a ruína de nossa civilização e, por contágio, de todas as outras civilizações. Porque a civilização cristã não foi substituída por uma outra, mas por uma anticivilização ou dissociação que  sobrevive à custa do  que sobrou da cultura original, daquela - hoje combatidíssima – ordem das almas

É assim evidente que nenhuma concepção da ordem política pode ser mais letal ou aniquiladora para a comunidade humana do que a democracia moderna ou a "sociedade aberta". Postulando uma sociedade sem fé e sem princípios, sem regras estáveis ​​e neutras, desprovidas de ordem de referências, dependentes apenas de opinião pública e a utilidade do maior número é como que revogar a disciplina de um navio, esquecer a sua nimbo e a ordem das estrelas, abandoná-lo à deriva. Para onde tal navio irá? Em que língua sua tripulação será compreendida? Como vai resistir às tempestades? O que justificará sua própria unidade e sua existência?

Quando, por exemplo, o Presidente da República Francesa - ou de qualquer outra democracia moderna - apela ao heroísmo da população para resolver um grave conflito armado, em nome do que ele faz? Com o que né? Se nada existe fora dos interesses dos cidadãos e da opinião da maioria, como podemos exigir dos rapazes que eles entreguem tudo o que possuem, até sua vida? Somente através de um recurso imoral a normas, crenças e valores permanentes, que a própria democracia nega, poderá recorrer a tais meios de coerção e sobrevivência.

Haveria uma objeção em nome da universalidade da razão. Se toda sociedade histórica, para sua simples existência e durabilidade, precisa ter sua sede numa fé e fervor coletivo, em noções do que é sagrado e correto, do que é o dever e o sentido do sacrifício, significará que cada civilização é intelectualmente e emocionalmente impenetrável para aqueles que não fazem parte de sua tradição ou herança?

Nada autoriza tal conclusão. A razão é uma instância capaz de penetrar tudo o que é puramente humano e, mesmo dentro de certos limites, a própria ordem do ser. A civilização ocidental de origem cristã - nossa civilização histórica - tem estado encarregada de demonstrar essa capacidade de razão na prática. Sua fé - nossa fé - já foi pregada em todas as áreas da Terra e se apoderou, em maior ou menor grau, das civilizações mais díspares. Sua ciência, sua técnica, suas categorias mentais e suas imagens comportamentais - basicamente racionais, anti-míticas - espalharam-se pelo mundo, penetrando-o em grande parte. Seja como cultura sobreposta ou como um enxerto cultural, pode-se dizer agora que uma única cultura - a cultura ocidental - é a cultura comum do planeta.

No entanto, paradoxalmente, este planetarização da cultura racional só poderia ser feita através de uma sociedade determinada - a ocidental – civilização que, como todas as outras, nasceu de uma fé - de ancoragem na eternidade, e foi construída em normas e valores morais. E isso porque, numa sentença filosófica, operari sequitur esse, o ato segue o ser: uma civilização não se expande sem antes existir. E se somente nesse caso foi possível o efeito de uma difusão em certo modo universal, era precisamente porque tal civilização dependia, originalmente, da Verdadeira Religião.

Na renúncia dessas origens está a última raiz da crise em que a sociedade ocidental está se debatendo. Crise não circunstancial, mas degenerativa, estendida sob a forma de rebelião generalizada e, por contágio, a outras civilizações, inclusive à natureza invadida e contaminada. A expressão dessa renúncia a qualquer ancoragem sobrenatural é a democracia liberal; além disso, que ela renuncia, nega toda transcendência, erige a sociedade do Homem para o Homem.

Porque esso chamada  "sociedade aberta" - o "direitos humanos" - ignora o primeiro e mais importante dos direitos humanos, que é o de buscar a verdade e servi-la, o de fundamentar nela toda sua vida durante sua a jornada terrena.


Fonte: Stat Veritas - La democracia como religión.

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