terça-feira, 14 de novembro de 2017

Lutero. Profeta ou Revolucionário? Pontos chave para um pensamento atual




Colunista Convidado: Martinho Lutero 500 Anos mais Tarde: Profeta ou Revolucionário? Pontos chave sobre um pensamento surpreendentemente atual.


Neste dia se cumprem os 500 anos do protesto de Martinho Lutero em Wittenberg, com suas 95 teses. É frequente retroceder até aquele 31 de outubro de 1517 –dia em que supostamente Lutero pregou essas 95 teses na porta da Catedral – como o começo da Reforma Protestante, se bem não todos os historiadores compartem esta visão. De fato, o verdadeiro ponto de inflexão luterano não o haveremos de encontrar no protesto de Lutero contra as indulgências, mas em sua “Experiência da Torre” (ou “do banheiro”, como o expressou Lutero, cf. Conversas à mesa, 3232c), a qual representa o Durchbruch, o ‘fragmento convincente’ da Reforma que se tornou ‘oficial’ no ano 1520, quando Lutero compôs sua De captivitate babilonica Ecclesiae, oferecendo sua nova doutrina sobre os sacramentos em relação à graça.

O evento para este aniversário foi recebido no mundo católico com uma emoção e um entusiasmo inesperados. Por exemplo, o cardeal Kasper, em um recente livro sobre Lutero considerado desde seu potencial ecumênico, nos convida a mirar ao antigo monge agostiniano como um novo São Francisco de Assis, quem simplesmente queria viver o Evangelho com seus irmãos; Lutero deveria ser enumerado “na longa tradição dos reformadores católicos que o precederam”. Recentemente, Monsenhor Galantino, secretário da Conferência Episcopal Italiana, disse que “a Reforma [Luterana] foi inspirada pelo Espírito Santo”.


Por sua vez, Lutero é aclamado por escritores e expertos como ‘católico dissidente’. Este é o título do livro de Peter Stanford, no que converte Lutero em profeta do Vaticano II, entre outros logros, ao predizer a igualdade do povo de Deus enraizada em um ‘sacerdócio compartilhado’ entre todos os católicos. “Isto é puro Lutero”, diz Stanford, mas talvez não recorde que o sacerdócio comum de todos os fiéis não é um que se ‘compartilha’ horizontalmente falando, como Lutero, mas que deriva da consagração de todo o povo a Cristo no batismo. Sobretudo, o sacerdócio comum se diferença ontologicamente do sacramento da ordem sagrada e está hierarquicamente subordinado a ele para poder cumprir com sua natureza: é exatamente o que negou Lutero em sua nova visão teológica de uma Igreja sem hierarquia (basicamente sem o Papa) e sem a ordem sagrada, considerado fonte de poder para os romanistas. Lutero queria uma Igreja sem o magistério papal para poder interpretar as sagradas escrituras sem mediadores. Ele afirmava sua própria autoridade segundo sua compreensão pessoal da Bíblia. Mas a única maneira de derrubar esse obstáculo romano era abolindo o sacramento da ordem sagrada e afirmando que todos somos sacerdotes, bispos e inclusive Papas. O ‘sacerdócio compartilhado’ de Lutero é o resultado de sua visão pessoal, unindo os sacramentos com a busca de uma ‘zona livre de magistério’ chamando à nobreza da nação alemã.
Sem embargo, poderíamos perguntar por que vincular Lutero com o Vaticano II? Um erudito norte-americano, R.R. Gaillardetz, nos oferece uma resposta: “O Concílio Vaticano Segundo foi um evento de significado sem igual na história do catolicismo moderno. Devemos retroceder até a reforma protestante para encontrar um evento que se equipare com o impacto do Vaticano II sobre o catolicismo romano”. Talvez se trate só do impacto, mas não é nada honesto adaptar os ensinamentos católicos à visão revolucionária de Lutero. Desejo apresentar algumas chaves desta revolução, lugar de profecia, em concordância com a visão de Richard Rex: que a de Lutero era uma nova religião. Em um artigo recente em “The Tablet” (14 de outubro de 2017) ele escreveu: “Delegado papal e teólogo, o cardeal Caetano, identificou intuitivamente as sementes de uma nova religião quando se reuniu com Lutero em Hamburgo em outubro de 1518. […] A realidade é que o cardeal Caetano tinha razão. Era uma nova religião” (ver seu livro publicado recentemente, The making of Martin Luther). 

Algumas pistas sobre o tormento interior de Lutero

Vale a pena considerar um dado sobre a vida de Lutero antes de encarar sua visão. Segundo Heinz Shilling – historiador alemão cuja biografia de Lutero é considerada uma das mais precisas – Lutero rezava o terço, meditava, e cantava salmos até ficar exausto. Não obstante, estes exercícios extenuantes de piedade o conduziram ao desespero porque cria que não era capaz de oferecê-los como devia, convertendo-se em objeto da ira de Deus e sem o Seu perdão. Não se tratava de mulieres, um problema de castidade, mas de um verdadeiro profundo sofrimento moral, como um nó, que alguém pode interpretar distanciado de Deus. A “Experiência da Torre” não só foi luz para sua mente como também libertação de uma carga. Sua oração para encontrar um Deus misericordioso foi finalmente escutada. Na torre, teve uma compreensão instantânea de Romanos 1:17: “O justo vive pela fé” e logo pode contar, em uma de suas Conversas à mesa: “Quando compreendi que a justiça de Deus é a misericórdia, e que nos justifica por meio dela, foi um remédio para minha aflição” (n. 4007).

Esta nova compreensão da relação entre justiça e misericórdia – de uma justiça vista agora desde a misericórdia e só como algo passivo que renuncia ao castigo – é a nova pedra angular do edifício cristão de Lutero. Esta experiência foi refrescante e convincente pelo fato de que finalmente se podia oferecer a misericórdia como justiça através da fé. Para além desta posição teológica discutível, que converte a justiça em misericórdia ao ponto de perder sua identidade, aqui observamos o ponto de ruptura: Lutero tornou de seu pedido subjetivo de um Deus misericordioso o princípio arquitetônico de sua teologia. Isto marcará uma revolução em teologia e na história do pensamento, ao tempo em que será o verdadeiro começo do modernismo: a primazia do sujeito, e logo da consciência, sobre o objeto, sobre o bem e Deus mesmo. Aqui encontrará sua primeira raiz a primazia do sujeito e da consciência por sobre a verdade e o bem. Nesta perspectiva, a declaração de Lutero em Worms ante o imperador Carlos V de Hamburgo (1521) é verdadeiramente interessante:
Se não sou convencido mediante testemunhos da Escritura e claros argumentos da razão (porque não creio nem no Papa nem nos concílios já que está demostrado que amiúde têm errado, contradizendo-se a si mesmos), pelos textos da Sagrada Escritura que citei, estou submetido à minha consciência e ligado à palavra de Deus. Por isso não posso nem quero retratar-me de nada, porque fazer algo contra a consciência não é seguro nem saudável”. (Obras de Lutero, vol. 32: Carrera del Reformador II, Fortress Press 1958, p. 112).

O cardeal Kasper não estará contente com a designação de Lutero como pai do modernismo, pelo fato de que enquanto o modernismo é um chamado à liberdade ‘autônoma’, a liberdade de Lutero era em busca de Deus. Por isso não seria o precursor do moderno, mas o último herdeiro do pensamento medieval sobre a unidade religiosa da societas christiana. Minha pergunta é simplesmente esta: há muita diferença entre uma liberdade autônoma com primazia sobre a verdade, e uma teônoma cativa da Palavra de Deus? Só há uma diferença, segundo o nível diferente sobre o que jazem: a primeira sobre um nível natural e a segunda sobre um sobrenatural, mas ambas se associam quanto à primazia do sujeito sobre o objeto, sem a mediação de uma razão metafísica tão apreciada pela população medieval. Uma liberdade cativa da Palavra de Deus também se utilizará para justificar qualquer tipo de liberdade, seja já para contradizer o magistério imutável da Igreja ou para cobrir aparentemente pecados ou debilidades em busca de um Cristo para além da Igreja e dos sacramentos.

Nominalismo ou arbítrio de Deus

Lutero seguia a corrente filosófica do Nominalismo que conheceu através do occamismo de Gabriel Biel (1410-1495), ainda que de toda forma terminasse convertendo-se em seu inimigo com a doutrina da justificação. Lutero revelou que seu “querido mestre” era Guillerme de Occam (fins do século XIII – 1349/50), um filósofo e teólogo franciscano que no ano 1319 foi professor em Oxford. Para Occam, a realidade é inexpressável em sua universalidade. Tudo o que existe é individual. Portanto não há natureza ou essência, as coisas que existem são somente entidades singulares, criadas imediatamente por vontade de Deus. Dado que qualquer ser vivo existente está vinculado diretamente à vontade de Deus sem nenhuma ‘razão’ em si mesmo, esta vontade divina não pode ser mais que absoluta, isto é, sem nenhuma outra razão mais que o fato de manifestar-se como é, necessariamente e sem razão compreensível. O processo de raciocínio é em última instância inútil porque tudo o que podemos saber é a realidade como pluralidade de indivíduos, mas nunca podemos saber a razão detrás desta pluralidade; nossos conceitos para identificar entidades existentes são simples sons convencionais com um fim pragmático, só um flatus vocis. Portanto, as palavras que pronunciamos não teriam sentido porque não há um vínculo com a realidade além do de apontar a algo. Não é esta suposição todo um programa hoje em dia?

Lutero fará sua esta visão nominalista: só Deus é necessário e o que Ele faça é necessário e absoluto, sem razão compreensível. Ninguém pode discutir o que Deus planejou ou o que faz porque não há outra razão que Sua vontade. Não olvidemos, a razão como tal não tem valor para Lutero: o levaria de volta a considerar a Deus para além da simples aceitação (cega) de sua misericórdia sanadora. Esta visão será crucial no problema da liberdade.
O problema do livre arbítrio ou de um Deus contraditório

De fato, para Lutero, “o livre arbítrio é uma grande mentira”. Em De servo arbitrio (1525) que Lutero escreveu opondo-se a Erasmo de Rotterdam, quem anteriormente havia escrito De libero arbitrio contra Lutero, o Revolucionário alemão reconhece que Erasmo tinha razão ao assinalar a essência de todos os problemas, a questão verdadeira: o problema do livre arbítrio. O livre arbítrio não existe e é só um desafio do orgulho do homem para com Deus. Lutero explica que se alguém tivesse livre arbítrio, poderia compreender a inescrutabilidade de Deus. Mas dado que Deus é insondável, o homem não é livre e tudo o que faça é porque está ‘obrigado’ a fazê-lo. Ao final, a obrigação procede da necessidade de Deus. Em outras palavras, o livre arbítrio não existe, mas a necessidade, e a única maneira possível de abraçar esta necessidade é com a fé. A fé faz que aceitemos incluso as contradições, levando-nos a confiar no poder salvador de Cristo.
Em realidade, é a contradição em si mesma a que justifica a fé e faz que o homem descubra sua condição de criatura e suas debilidades ante a majestade de Deus. Para Lutero, Deus se mostra pelo que realmente é precisamente em contraposição (ou contradição), ou seja, sub contraria specie. Lutero inaugura um processo dialético, uma polarização do ocultamento e descobrimento de um mistério. O poder de Deus só pode ser compreendido em Sua debilidade e Seu abandono total na cruz, assim como a graça de seu amor se descobre na rejeição do mesmo pelo pecado e as ofensas da humanidade. A teologia da cruz é essencialmente um processo de ‘revelação e ocultamento’ de Deus, sempre mediante o contrário. O amor precisa do ódio para revelar-se a uma alma plenamente, assim como a fé precisa de sua negação e inclusive do cativeiro pelas dúvidas e pecados dos homens. Quanto mais se obscurece a fé mais convincente é. Pode parecer estranho, mas Deus só pode ser apreciado como Deus quando se afirma sua negação. A negação de Deus é pecado.

Cristo só pode ser amado como um amável Salvador se luta permanentemente contra o demônio. Estritamente falando, ninguém pode ter uma ideia clara de Cristo sem o demônio. Ninguém pode ser salvo do inferno por Cristo se o mesmo Cristo não é condenado por meu pecado ao inferno. Aqui, a contradição tem sua justificação final em um Deus contraditório, que para salvar-me a mim tem que colocar-se contra si mesmo: a batalha do pecado e a graça! Isto abre o caminho à compreensão da vida do spirit (der Geist) de Hegel, como processo dialético onde a afirmação é superada por uma negação para encontrar sua síntese em um bem maior e melhor (a suma dialética do bem e o mal).

Sem embargo, a formulação teológica de uma contradição elevada a princípio de conhecimento representa o destronar da ‘teologia negativa’ por parte da teologia de um Deus contraditório: a graça e o pecado podem coexistir porque em última instância estão baseados na oposição do intelecto contra a vontade de Deus. Portanto, os humanos não são livres de eleger não pecar, enquanto que Deus não está obrigado por nenhuma disposição racional a atuar mais além de Sua vontade divina (arbitrária), infalível e imutável. Isto leva a que não possamos fazer mais que o que Deus estabeleceu desde a eternidade. Aqui está a raiz da teoria da predestinação de Calvino.
A graça que cobre o pecado: o problema da justificação

A ausência de liberdade é a exaltação da fé. Mas surge uma pergunta: pode a fé ser satisfeita por não captar-se nada do mistério de Deus, aceitando cegamente o mistério de uma disposição divina eterna? Onde está a liberdade da fé para dar um passo adiante e proclamar “eu creio”? De ser assim a fé não é um ato humano livre mas imposto por necessidade. Por suposto que isto facilitará o caminho da secularização, ou seja, a renúncia da fé em nome da liberdade e do laicismo do Estado. Não obstante, a função da fé (sem conhecimento) no sistema religioso de Lutero é interessantemente de grande valor. De que se trata isto? É importante referir-se primeiro ao pecado original, que para Lutero é ademais e sobretudo um “pecado radical”, identificado como rebelião da carne. 

Considerando que o homem pecou contra Deus e sua disposição ao pecado – a concupiscência da carne é tão forte que o homem vive sempre em pecado. Tudo o que faça é pecaminoso. “Toda boa obra é pecado” escreveu Lutero contra Latomus (um dos teólogos da universidade de Lovaina), e “enquanto vivamos, o pecado é essencialmente inerente às boas obras, assim como a habilidade de rir é inerente ao homem” (Obras de Lutero, vol. 32, Contra Latomus, cit., pp. 168-169.186-187). Pelo pecado original, o homem é cativo do pecado como tal. Nada pode ajudá-lo a sanar mais que crer firmemente que foi salvo por Cristo. A fé é uma “confiança cordial”, é confiar-lhe o coração a Deus através de Cristo.

É mais, a fé só é considerada como um esforço pessoal, o ato de crer em Deus, mais que uma maneira de aceitar verdades para ser salvo. A fé é o caminho para crer cordialmente que meus pecados foram perdoados e graças a isso a justiça é oferecida como um amor que perdoa. A justiça não estará presente em mim como herança – só o pecado pode aderir-se à natureza humana – mas me será outorgada sempre e quando creia firmemente. A justiça corresponde precisamente a Cristo e me é dada como empréstimo temporário cuja duração depende da intensidade da fé. Em certo sentido, é uma fé que produz graça em lugar de uma graça que produza fé. Mas o que existe da primeira infusão da fé no batismo por meio da graça? Se a fé é necessária como alternativa à liberdade, Lutero tem que concluir que a graça é tão necessária como a fé. É o mesmo que dizer que a graça já não é um dom mas um direito! Mas como direito, deixa de ser graça, dado que graça significa gratuidade.

A visão da natureza humana de Lutero é profundamente pessimista: pela ausência de livre arbítrio um homem é condenado a cometer pecados que infectam sua alma permanentemente. Nenhuma medicina, nenhum hospital, é capaz de sanar o pecador, portanto pode voltar finalmente à casa e ser uma pessoa feliz. O homem de Lutero está condenado permanentemente a um hospital de campanha, onde só recebe breves tratamentos de primeiros socorros: não há exames completos nem terapia intensiva porque simplesmente não terão efeito no enfermo. Simplesmente, não têm sentido.

É esta teologia, com seu forte transfundo filosófico, uma reforma da doutrina católica ou antes o começo de uma nova crença? Coincido definitivamente com Richard Rex: se trata de uma religião nova.
Pe. Serafino M. Lanzetta

(Traduzido por Marilina Manteiga. Artigo original)

(Tradução de Airton Vieira de http://adelantelafe.com/lutero-profeta-revolucionario-puntos-clave-pensamiento-sorprendentemente-actual/)

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