sábado, 23 de setembro de 2017

Capítulo XII - MÃE, NÃO MADRASTA [As Indulgências]



Em verdade vos digo, tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu; e tudo o que desligardes sobre a terra será desligado no céu” (Mt XVIII, 18)


À guisa de ilustração introdutória:
Via de regra: as mães querem o bem dos filhos; as madrastas, o seu bem nos filhos. Porque as primeiras lidam com o que é seu, as segundas, com o dos outros. As mães, quando pensam em um filho o pensam pelo filho. As madrastas, quando pensam em um enteado o pensam pelo pai. As mães só podem ser uma. Já as madrastas... E assim caminha a humanidade. Iniciemos então pelas madrastas e sua (livre) interpretação de nosso dístico:

“Cristo no céu ratifica o que é feito em Seu nome e em obediência à Sua Palavra aqui na terra. Tanto em Mateus 16:19 como em 18:18, a sintaxe do texto grego deixa bem claro o seu sentido (sic). O que você ligar na terra já vai ter sido ligado no céu. O que você desliga na terra já vai ter sido desligado no céu (SIC). Em outras palavras, Jesus no céu libera a autoridade de Sua Palavra à medida que é proclamada na terra para a realização do seu propósito.”[1] (grifo meu)

À luz do que já vimos até o momento, temos aqui um novo exemplo de como são distorcidas hermenêutica e exegese a fim de se forçar a sintaxe e a semântica do texto sagrado. Ou vice-versa. À maneira das madrastas que adquirem no pacote um enteado um tanto fora dos padrões estéticos: logo pensa em uma loja onde obtenha para ele um modelito perfeito, mas para ela. Quer então que o mancebo se encaixe a qualquer custo. Não adapta a roupa à criança, adapta a criança à roupa. Amassa-o daqui, torce-o dali, joga-o numa sauna, deixa-o de molho umas horinhas, empurra-lhe um providencial jejum, até que sirva ao modelo de roupa escolhido. “Perfeito!”, exclamará por fim.


Analisando o “modelito” acima, vejamos: dizem os intérpretes que “a sintaxe do texto grego deixa bem claro o seu sentido”. Muito bem, o grego, que não é citado textualmente no caso em pauta, diz, neste versículo 18[2]: “amhn legw umin osa ean dhshte epi thV ghV estai dedemena en tw ouranw kai osa ean lushte epi thV ghV estai lelumena en tw ouranw”. Traduzido ao latim diretamente do original por S. Jerônimo[3], será: “amen dico vobis quæcumque alligaveritis super terram erunt ligata et in cælo et quæcumque solveritis super terram erunt soluta et in cælo”[4]; que por seu turno, traduzido diretamente da tradução de S. Jerônimo pela autorizada tradução do padre Matos Soares, teremos a nossa citação introdutória.

Tudo muito bom, mas se tudo terminasse aqui. Ocorre que o contexto – em íntima ligação com o de Mt XVI, 19 como acertadamente dizem os intérpretes –, coloca o “você” das frases: “O que você ligar na terra já vai ter sido ligado no céu etc”, como pertencente a qualquer um, desde que esse tal proclame a Palavra de Deus “para a realização de seu propósito”, sendo que aqui tal autoridade é liberada por Jesus no céu “... à medida que é proclamada na terra...”. Resumindo: A Palavra de Deus – assim pensam – testifica e ensina que Nosso Senhor “libera” determinados poderes a todos, indiscriminadamente, conforme realizem o “propósito da Sua Palavra”.

Fugiria ao propósito deste livro a análise mais detalhada em um confronto apologético aprofundado, o que deixo para as indicações de fontes, que como dito satisfarão aos leitores que possuam integridade intelectual e o desejo da verdade. No entanto, pode-se afirmar que de nenhuma maneira possível e imaginável Cristo deu desta autoridade específica a todos e/ou de vez em quando: Ele o deu à Igreja, cujos legítimos pastores (Papas e Bispos) receberam a sucessão apostólica pelas mãos dos próprios Apóstolos, e de forma permanente[5]. Portanto, tudo o que a Igreja liga na terra é ligado nos céus. O que a Igreja desliga, é desligado. Uma das maiores comprovações desta verdade está naqueles que morrem excomungados ou em inimizade com a Igreja, portanto, desligados dela[6]. Em geral não se difunde o relato fiel do triste fim destas almas, o que dá a falsa sensação, primeiro, de que foram bem-sucedidas na morte como – em sentido material – o foram em vida, e de que basta-se morrer para já se estar no Paraíso, gozando da eterna amizade com Deus. Não é o que a Sagrada Escritura, a Tradição e o Magistério afirmam.   

Como conclusão, poucos exemplos poderiam ser de maior utilidade que o de S. Bruno, o santo alemão fundador de uma das mais austeras ordens religiosas da Igreja, a Cartuxa. Deus, para provar a autoridade conferida à sua Esposa, e por cima solidificar a fé deste homem já seriamente determinado por Si, realizou um dos mais terrificantes milagres de que se tem conhecimento nos anais da Igreja. Nada aqui pertence ao campo da ficção, uma vez que inúmeras foram as testemunhas e os registros até hoje mantidos no local. Ainda que ocupe algum espaço, valerá a pena lermos a interessante narrativa que nos faz esta fonte[7]:

Um célebre doutor da Universidade de Paris, chamado Raymond Diocrès, acabara de morrer, levando consigo a admiração universal e as lamentações dos alunos. Era o anos de 1082. Um dos mais sábios doutores do tempo, insigne na Europa por sua ciência, talentos e virtudes, de nome Bruno, estava então em Paris com mais quatro companheiros, fazendo a vênia de assistir aos obséquios do ilustre defunto.
Haviam deposto o corpo no salão da chacelaria (sic), próximo à igreja de Notre-Dame, onde assomava grande massa de gente a cercar o féretro em que, conforme o uso do tempo, se expunha o morto, coberto por singelo véu.
No momento em que se terminava de ler uma das lições do Ofício dos Mortos, que assim começa: “Respondei-me. Quão grandes e numerosas são vossas iniqüidades”, uma voz sepulcral partiu de sob o véu funeral, sendo escutada por toda a assistência: “Por um justo julgamento de DEUS, fui eu acusado”. Precipitaram-se em direção ao corpo, e levantaram a mortalha: lá estava o pobre morto, imóvel, gelado, perfeitamente morto. Depois da interrupção, logo retomaram a cerimônia; o estupor paralisava a assistência, penetrada de temor.
Continuaram o ofício; chegaram a sobredita lição “Respondei-me”. Desta vez, à vista de todos, o morto se levantou, e com voz mais possante, mais acentuada, disse: “Por um justo julgamento de DEUS, fui julgado”, e cai. O terror no auditório atingiu o cume. Novamente médicos constataram a morte. O cadáver estava frio, rígido. Ninguém teve coragem de continuar, por isso se retomou ofício no dia seguinte.
Não sabiam que fazer as autoridades eclesiásticas. Uns diziam: “É um réprobo, indigno das orações da Igreja”. Outros respondiam: “Não, o fato está mergulhado em terrível dúvida; mas, enfim, nós que aqui estamos, não seremos um dia acusados primeiro, e depois julgados por um justo julgamento de DEUS?” O bispo era dessa opinião e, no dia seguinte, recomeçara o serviço fúnebre na mesma hora. Bruno e seus companheiros estavam lá, como na véspera. A Universidade em peso, toda a Paris acorreu para Notre-Dame.
Recomeçou o ofício. A mesma lição: “Respondei-me”, e o corpo do doutor Raymond acomoda-se sobre um assento, e com indescritível acento, que gelou de terror a platéia, afirmou: “Por um justo julgamento de DEUS, fui condenado”, caindo imóvel.
Desta vez, não havia dúvida. O que o terrível prodígio constatou à evidência era incontestável. De ordem do bispo e do capítulo, despojou-se durante a sessão o cadáver das insígnias e dignidades, transladando-o para o caminho de Montfaucon.
À saída do salão da chancelaria, Bruno, com cerca de 45 anos de idade, decidiu deixar o mundo, de uma vez por todas, buscando junto aos companheiros, nas solidões da Grande Cartuxa, próximo a Grenoble, um retiro onde pudesse com mais certeza se salvar, preparando-se assim, à vontade, para o julgamento de DEUS.

O exemplo acima é outro de um sem número que a Igreja traz em seus anais do trágico fim de um seu inimigo, ainda que se travista de aparente santidade e esteja toda uma vida no corpo da Igreja, sem contudo pertencer à sua alma[8]. De alguém que morre em desgraça por ter negado a graça legada por quem recebeu autoridade para distribuí-la. Aos homens se pode enganar, iludir, trapacear. A Deus, jamais. E com isso passemos diretamente ao nosso tema.

As indulgências são outra das muitas incompreensões que sofre a Igreja devido à grande quantidade de ignorâncias, vencíveis e invencíveis, inocentes ou maliciosas, que o demônio (pai da mentira e do engano) promove nas mentes as mais providas de boas intenções. A exemplo de tudo o que já foi tratado não será preciso à sua compreensão mais que simplicidade e boa vontade, associado ao desejo honesto do bem, do belo e do verdadeiro para distinguir a lebre do gato, a ovelha do lobo, Deus de César.

A analogia com que iniciei esta questão não foi gratuita. Como nos foi demonstrado no exemplo das duas mães do livro dos Reis[9], toda legítima mãe jamais causaria um dano ao filho, ao menos consciente ou intencionalmente. Se involuntariamente o causar não deixará por isso de querer o seu bem, amá-lo e de continuar sendo sua mãe. Ao invés de prejudicá-lo, buscará sempre os maiores e melhores meios de auxiliar o filho no tangente ao êxito que deverá ter na vida, a partir do instante mesmo da concepção, que é quando passamos a existir. E isso para ficar nem seu aspecto material. Ao mesmo tempo, toda mãe que se preze não negará ao filho os castigos merecidos, para que este não se habitue aos vícios e os tome por virtudes, passando a trocar o certo pelo errado. Com tal exemplo intentarei esclarecer acerca do que parece ser os dois principais pontos de incompreensão sobre o nosso tema: o que são as indulgências e sua aplicação por parte da Igreja.

Indulgência vem de “indulto”, o mesmo que anistia, salvo conduto, perdão, clemência, absolvição. As Sagradas Letras ensinam que o homem quando peca deve passar por um processo oposto para se atingir a absolvição, que por mera questão de justiça não pode vir “de graça”. Vejamos[10]:

a)      Antes de pecar, o homem pensa e deseja o pecado, ou o consente – Deverá, em seu interior, arrepender-se sinceramente do que fez.

b)      O homem então comete o pecado, realiza a ação – Deverá realizar a ação da busca do perdão, ou confessando-se diretamente a Deus (pecados menos graves, veniais) ou procurando o Sacerdote para a absolvição (pecados mais graves, mortais).

c)      O homem, ao pecar, além da ofensa ao Criador, defrauda a si e ao próximo – Deverá, além de reparar a ofensa restituir de alguma forma o que defraudou.

d)      O homem, uma vez consumado o pecado, ficará mais vulnerável e propenso a cometer novamente o mesmo ou outros pecados diversos – Deverá fazer penitência, a fim de lutar contra o desejo de pecar, pedindo a Deus a graça da repulsa ao pecado.

Isso se quiser salvar-se.

A Igreja, ao receber de Cristo as “chaves do Reino” passa a ligar e desligar. É a mãe que pode castigar ou tirar do castigo, porque tem autoridade para fazê-lo. E da mesma forma que quando erramos nossa mãe apesar de nos desculpar nos põe de castigo, e ou mesmo aplica a vara – a despeito de certas leis que andam vigorando por aí – Deus assim age afim de evitar um mal maior e para ainda aplicar a justa justiça. Para simplificar, o que é nosso intento, o esquema acima explica que ao pecar, mas sinceramente buscar o perdão, seremos perdoados. Mas o perdão dado não significa que não tenhamos de assumir as consequências de nossos atos. Uma coisa é o perdão do pecado, outra, o do/a castigo/pena devido/a. É aí que entram as indulgências, o salvo conduto.

Toda indulgência é um ato gratuito de Deus. E como toda a graça divina, não depende de nós. Como Deus deixou o seu Corpo Místico na terra para administrar e executar o que a Cabeça ordena[11], este Corpo que é a Igreja nos oferecerá inúmeros meios para se obter o perdão, não só do pecado, mas de sua pena. São, concretamente, determinadas orações, utilização de objetos sagrados e bentos como imagens (que serão tratadas no capítulo XV), escapulários, terços, crucifixos, também chamados Sacramentais, obras de caridade, penitência, etc, mas especialmente e sobretudo a intenção de uma Santa Missa, o culto por excelência[12], impetrada por nossa alma ou a de outra pessoa falecida ou não. Os que não tentam ao menos perceber e/ou entender a lógica de misericórdia encerrada nas indulgências simplesmente acabam por desprezar inúmeros meios de salvação ou de diminuição do sofrimento devido após a morte.

Ao contrário do que muitos pensam ou simplesmente ignoram, o pai do protestantismo não protestou contra as indulgências, ele protestou contra a sua aplicação (da mesma forma que hoje faria com muitos filhos seus, especialmente os ligados à “teologia da prosperidade”). Por que os protestantes não o seguem? Me valho para o encerramento do capítulo o encontrado na fonte abaixo. Aqui o temos[13]:

Por volta de 1515, Um monge alemão, chamado Lutero, irou-se contra outro monge na Alemanha, que em desobediência ao Papa (em Roma), andava cobrando pelas indulgências apostólicas numa pequena cidade alemã. Daí em 31 de Outubro de 1517, a tese de Lutero nº 91: Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do Papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido”.

Veja que, o que o mercenário monge Tetzel fazia, não era a opinião do Papa. Na verdade, a cólera de Lutero, foi contra o ato deste dominicano mercenário, chamado Johann Tetzel. Como prova disso, dizia Lutero em sua tese nº 50: “Deve-se ensinar aos cristãos que, se o Papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas”.

(...)
Lutero não era contra as indulgências apostólicas, escreveu em sua tese 71: “Seja excomungado e amaldiçoado quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.” E sim, contra a venda delas por inescrupulosos que faziam isso sem o conhecimento do Papa...

Concluindo

As indulgências, portanto, são indultos conferidos pela Igreja às almas para que ou se salvem, ou seu purgatório seja abreviado, ou mesmo inexista. As Escrituras e os Santos nos atestam que todo o sofrimento de uma vida não se compara a um só dia de sofrimento não diríamos nem no Inferno, mas no Purgatório, onde seremos purificados “...como que pelo fogo” (1 Cor III, 15), pois de lá não sairemos antes de termos pago o último centavo (cf. Mt V, 25s). A Igreja nunca vendeu indulgências, jamais negociou “terrenos no céu”. Não há um único documento papal que autorize esta prática. Ela apenas distribui gratuitamente os tesouros de Graça que possui, porque é Mãe e recebeu autoridade para isso[14]. Daí que para todo católico que deseje fazer jus ao nome, não perderia as oportunidades que todos os dias nos dá a Santa Igreja de poder salvar as almas e/ou abreviar o nosso e o purgatório de quem já partiu, e que por isso mesmo já não mais pode fazer por si caso esteja no Purgatório[15].
Como dogma de fé temos que, ao morrer, ao menos três realidades seguramente nos serão possíveis: o Céu, o Inferno e o Purgatório. As indulgências servem aos destinados à última possibilidade, que são a maioria dos que morrem, juntamente com os que vão ao Inferno[16]. Ajudar, por isso, a uma alma a sair mais rapidamente de seu suplício é a certeza de, entre outros benefícios, ganharmos novo intercessor no Céu.

Em tempo: o Dicastério (órgão) responsável para administrar as indulgências chama-se Penitenciária Apostólica[17]. O nome não é por acaso, afinal está intimamente ligado à ideia de penitência. Bastará com realizar uma pesquisa a este órgão para saber como se adquirir indulgencias e mesmo entendê-las com mais profundidade.

         


Apresentação do livro

Introdução do livro


[1] Fonte: https://gotquestions.org/Portugues/ligar-desligar.html.
[2] Septuaginta + Novo Testamento (forma transliterada). Em: http://www.bibliacatolica.com.br/septuaginta-transliterada-vs-vulgata-latina/sao-mateus/18/.
[3] Ver Introdução, nota 1.
[4] Vulgata. Id.
[5] Ver capítulo VII – A sucessão apostólica.
[6] A título de (triste) ilustração temos: Voltaire, Robespierre, Nietzsche, Schumann, Che Guevara, Freud, Napoleão, Hitler e seus generais. Sem falar, em nossos tempos, de um sem número de artistas, políticos, intelectuais e gente das mais diversas áreas, notórios anticatólicos. Sem falar ainda nos próprios fundadores do protestantismo como Lutero, Calvino, Henrique VIII e outros.
[7] http://www.padremarcelotenorio.com/2011/07/s-bruno-e-um-sinistro-velorio/.
[8] Ver capítulo II – Fora da Igreja não há salvação.
[9] Vista no capítulo I -  A unidade cristã.
[10] Ao se falar no Purgatório (capítulo XIII) serão utilizados alguns exemplos que servirão para fortalecer a compreensão sobre o presente tema, uma vez que a ele está intimamente unido.
[11] Ver acima: A rejeição católica.
[12] Tratada no penúltimo capítulo.
[13] https://caiafarsa.wordpress.com/a-lenda-da-%E2%80%9Cvenda-de-indulgencias%E2%80%9D-2/.
[14] Cf. Eclo III, 1-3; Col III, 20.
[15] Nos casos do Céu e do Inferno, por razões compreensíveis as almas não tem necessidade ou não podem mais fazer por si. As que estão no Céu (triunfantes), como as que estão na Terra (militantes) é que farão pelas do Purgatório (padecentes ou purgantes). Nisto reside a verdade de que a fé e a esperança desaparecerão, mas não a caridade.
[16] Cf. Mt VII, 13.
[17] Endereço eletrônico: http://www.vatican.va/roman_curia/tribunals/apost_penit/index_po.htm

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