quinta-feira, 6 de julho de 2017

A destruição do Cardeal Pell



Tradução: Gercione Lima

Há dois anos atrás, quando essa história veio a público, perguntei a alguns amigos e colegas jornalistas, "este é o tiro de misericórdia em Pell?" Na época, é claro, seu nome não foi sequer ser mencionado. Mas na medida em que os eventos foram se desenvolvendo no que mais tarde viria a ser referido como "Vatileaks II,"  ou seja novas alegações na mídia sobre relatórios de má gestão financeira no Vaticano,  ficou então em aberto se Pell, como o homem colocado no poder para resolver as coisas, estaria ou não no olho da mira.


Na época, já pairava no ar uma impressão de que Pell, durante o mandato de sua investigação sobre o banco do Vaticano (também conhecido como o Instituto para as Obras de Religião, ou IOR), tinha rapidamente se tornado uma persona non grata. Quando ele assinou a Carta dos 13 cardeais expressando preocupação sobre o modo como o Sínodo estava sendo conduzido - algo que o próprio Francisco tomou como algo pessoal - sua queda em desgraça só se acelerou.


O clima parecia ter se tranquilizado por um tempo, especialmente depois que o próprio papa Francisco mandou interromper a auditoria que ele estava fazendo no banco do Vaticano em setembro do ano passado.


E então, esta semana, tudo explodiu. Alegações de que Pell esteve envolvido em casos de abuso sexual há algumas décadas e que haviam emergido há dois anos atrás agora passaram de uma investigação a indiciamento oficial. De acordo com fontes que conhecem o cardeal australiano, a mídia em sua terra natal sempre foi hostil para com ele e por muitos anos. Além do mais, ele não é bem-amado por uma parcela significativa do clero de lá. De acordo com a própria resposta de Pell, ele está ansioso para finalmente ter seu dia no tribunal e lutar contra as acusações que ele categoricamente nega.

No entanto, em um artigo de Nancy Flory no The Stream, todo o assunto pode ser caracterizado como uma "caça às bruxas", projetado para destruir a reputação de Pell:


"Pell jamais conseguirá obter um julgamento justo", escreveu a colunista australiana Angela Shanahan. Ela está descrevendo a " caça às bruxas promovida pela mídia" que vem perseguindo o cardeal George Pell por dois anos. Novas e vagas acusações - de "históricos crimes sexuais" - foram apresentadas contra o cardeal Pell ontem pela manhã. Cardeal Pell repetidamente negou as alegações de abuso sexual feitas contra ele. Ainda assim, a mídia na Austrália não se cansa de repetir alegações sobre a culpa do cardeal. Eles imprimiram informação vazadas das  investigações contra Pell e afirmaram que um indiciamento era iminente. Além do mais, um livro negativo sobre o cardeal Pell (Cardinal: The Rise and Fall of George Pell) saiu em maio.



A “caça às bruxas”.


Algumas poucas almas corajosas têm questionado abertamente as insinuações feitas por esse julgamento midiático do Cardeal. Amanda Vanstone, colunista do The Sydney Morning Herald e que não é "nenhuma fã de religião organizada", denunciou a histeria da mídia em relação ao cardeal Pell. "O que estamos vendo não é melhor do que um linchamento público da idade das trevas ...  é pior do que fazer uma simples avaliação de culpabilidade. A arena pública está sendo usada para destruir uma reputação e provavelmente evitar um julgamento justo ", escreveu Vanstone. "O normal não seria tentar garantir que uma pessoa possa ter um julgamento justo", pergunta ela , "mantendo fora da arena pública material prejudicial e que não foi devidamente comprovado?"


É de se perguntar se alegações sobre fatos ocorridos há décadas atrás - geralmente impossíveis de serem provadas – poderiam fazer outra coisa, senão deixar um homem como Pell com uma reputação totalmente arruinada. Certamente, um veredito de culpado sob tais circunstâncias, parece improvável. Mas, com manchetes como "Os pedófilos do Papa " circulando agora na mídia,  mesmo uma absolvição unânime jamais conseguirá restaurar o seu bom nome.


Muitas pessoas vieram me perguntar se eu acho que ele é culpado. O que eu posso dizer é que sei muito pouco sobre as circunstâncias até mesmo para emitir um simples palpite. A busca implacável pela sua destruição tende a fazer com que eu me torne por reflexo solidário, mas a verdade aqui tem uma grande importância. Por amor a ela e para o bem das supostas vítimas, espero que um julgamento completo e justo seja possível, e que a verdade venha à tona.

Uma possível consideração deve ser feita em relação a uma potencial culpa de Pell . Refiro-me ao estilo gerencial do Papa Francisco. Como já observei antes, o papa parece ter uma tendência de se cercar de homens comprometidos. Desde Mons. Battista Ricca (também envolvido com a reforma bancária do Vaticano) ao Arcebispo Vincenzo Paglia , o Cardeal Francesco Coccopalmerio e o Cardeal Reinhard Marx,  percebemos que alguns dos homens mais notáveis e próximos a Francisco são sempre homens com esqueletos em seus armários, que poderiam ser facilmente retirados e colocados em exposição se eles vierem a se tornar ... digamos assim inconvenientes. Se Pell fosse um homem com alguma história de  abuso sexual em seu passado, certamente isso poderia ser usado contra ele, se e quando necessário. Mas, ainda que ele seja tão inocente e puro como a neve, o simples fato dessas alegações existirem poderia prover uma arma necessária para colocá-lo em uma posição tão delicada. Afinal, Pell tinha permissão para investigar a caixa de Pandora que são as finanças do Vaticano. E é difícil não se perguntar se ele acabou descobrindo mais do que devia.


Lembre-se que em Janeiro de 2015, o "presidente deposto do banco do Vaticano", Ettore Gotti Tedeschi, escreveu um artigo no Catholic Herald no qual ele alertava que Pell poderia não estar muito a par dos fatos acontecidos na história recente do banco – e como ele acreditava que ele havia sido demitido  devido à sua "decisão de apresentar um plano que teria mudado totalmente o papel e governo do banco". Depois de ter apresentado o seu próprio lado da história, Gotti Tedeschi  fez uma série de recomendações a Pell:

https://fratresinunum.com/2015/01/19/eis-o-que-seria-necessario-saber-do-cardeal-pell/



Por fim, acredito que o cardeal Pell deveria desvendar também esses quatro mistérios, embora eu tenha certeza de que é tarde demais, pelo menos para mim:


1) Quem mudou a lei contra lavagem de dinheiro do Vaticano, em Dezembro de 2011, e por quê?


2) Quem realmente decidiu que eu tinha que ser removido pelo Conselho Laico como presidente do Banco do Vaticano no dia 24 de maio de 2012, e por quê?


3) Quem foi que desobedeceu Bento XVI, o qual queria a minha reabilitação?


4) Quem decidiu que meus pedidos e súplicas para que eu fosse interrogado sobre os fatos acima deveriam ser ignorados? Quem não quer que venha a público a minha versão da verdade, e por quê?


É impossível ler essa lista e não vê-la como uma acusação de prevaricação intencional por parte de atores desconhecidos, mas gente de peso dentro da estrutura de poder do Vaticano.


A questão das mãos invisíveis operando alterações dentro do IOR é uma questão intrigante. Parece relevante aqui notar que parte do contexto por trás do golpe que derrubou a Soberana Ordem Militar de Malta (SMOM) envolve uma alegação de que um enorme legado (30 milhões de francos suíços) doado à Ordem foi entregue ao Banco do Vaticano. Marc Odendall, uma das peças-chave na facção Von Boeselager na história da Ordem de Malta, foi nomeado pelo Papa Francisco em 2014 para o Conselho de Autoridade de Informação Financeira do Vaticano - um órgão de supervisão criado pelo Papa Bento XVI para ajudar a limpar a corrupção e má gestão no IOR. Em dezembro passado, em torno do mesmo tempo que Albrecht von Boeselager estava sendo forçado a sair de seu cargo como Grand Chancellor da Ordem, o seu irmão Georg foi nomeado para um cargo de supervisão no Banco do Vaticano. E no meio de tudo isso, a administradora da doação de 30 milhões de francos foi acusada, em um relatório anonimamente escrito que foi divulgado para a mídia no início deste ano, de ter feito ameaças segundo as quais se o processo contra ela (arquivado pelo Ordem de Malta para obter o controle de seu legado) não fosse retirado, ela iria revelar segredos sujos sobre o que vem acontecendo dentro das próprias instituições financeiras do Vaticano:


"Ela sabia muito sobre alguns dos negócios financeiros e funcionamento interno do Vaticano, incluindo, devemos presumir, alguns que não eram inteiramente honestos."


Ele continua: "Ela estava, agora acredita-se, indicando que se ela continuasse a ser processada ou indiciada, iria abrir a boca no trombone revelando ao mundo tudo o que ela sabia sobre essas transações financeiras internas do Vaticano e não hesitaria em divulgar os nomes de certos altos funcionários do Vaticano e suas conexões com as operações e negócios ".
Voltando ao papel do próprio Pell em acertar as finanças do Vaticano, me lembro também que foi ele que descobriu mais de um bilhão de euros "escondidos" dos livros de contabilidade do IOR em 2015:


As vastas somas de dinheiro não declaradas estavam escondidas em várias contas bancárias de organizações e grupos dentro da Santa Sé em Roma.


Os fundos não foram utilizados abusivamente e não fazem parte da onda de corrupção e escândalo que anteriormente trouxeram vergonha ao Vaticano, mas o dinheiro não foi devidamente declarado ou colocado em disponibilidade para a plena utilização do Vaticano porque foi escondido em uma prática italiana de manter à parte fundos não declarados.


"Em uma prática italiana de manter à parte fundos não declarados."


Fala sério! Então, o que seria ilegal para qualquer outra pessoa é apenas "uma prática italiana"?


Há também uma outra história recente que poderia parecer ter um impacto mínimo se a considerarmos isoladamente, mas que assume um significado maior à luz das questões maiores que envolvem a corrupção no IOR. Libero Milone, o novo Auditor Geral nomeado pelo Papa Francisco em 2015 para mergulhar na situação financeira do Vaticano, de repente e inesperadamente renunciou no mês passado. Nenhum detalhe foi dado, mas é claro que desde o início Milone enfrentou resistência dentro da burocracia do Vaticano para reformas financeiras. No início de seu mandato, por exemplo, seu computador foi hackeado. E de acordo com Edward Pentin, "A divulgação dessa história deu lugar ao escândalo Vatileaks II."


Pentin também observou um ponto em particular sobre a resistência enfrentada tanto por Milone como Pell:


Mais recentemente, ele [Milone] assinou uma carta com o cardeal George Pell, prefeito da Secretaria da Economia, repreendendo a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA), o órgão do Vaticano responsável pela gestão imobiliária do Vaticano, depois que esse ordenou aos departamentos do Vaticano para fornecer suas informações financeiras não ao auditor geral, mas a um outro de fora.


Milone e Cardeal Pell enviaram então uma carta em maio para todos os dicastérios dizendo "com profundo pesar" que tiveram que intervir refutando a instrução de APSA.  A ação arbitrária e unilateral por parte da APSA foi vista como uma resistência extraordinária, não só contra a autoridade da Secretaria de Economia e o auditor geral, mas também contra a Secretaria de Estado. E ao contrário da auditoria final da PwC no ano passado, fontes dentro do Vaticano disseram que isso não veio de uma autoridade superior, e foi, portanto, lida como um movimento provocativo da parte da APSA para "recuperar" alguns dos seus poderes.


APSA tem sido até agora, sem dúvida a mais resistente a reformas que envolvem um maior escrutínio financeiro.


De acordo com uma reportagem do website americano Newsmax.com, foi esta situação com a APSA que poderia ter levado o Papa Francisco a se voltar contra Pell e seu trabalho:


Pell de fato, encontrou uma nova fonte potencial de receita nos espaços comerciais e residenciais em Roma valorizados em cerca de 1 bilhão de euros e geridos pela Administração do Patrimônio da Santa Sé, ou APSA. Segundo o cardeal, a gestão não estava à altura e em julho de 2014 o Papa Francisco passou a Pell o controle das propriedades.


No entanto, o presidente da APSA, o Cardeal Domenico Calcagno, recentemente se tornou muito próximo ao Papa Francisco, tendo sido visto muitas vezes jantando com ele na residência Santa Marta. Ao longo de 18 meses, Francisco foi removendo Pell do controle imobiliário da APSA. Alguns culpam a crença de Pell no mercado livre,  algo do qual o papa Francisco é um conhecido crítico.


Francisco matou sua própria auditoria em setembro passado.


Então, aqui, mais uma vez, estamos diante de um mistério: por que Milone renunciou apenas há pouco menos de uma semana antes que Pell fosse formalmente indiciado? Será que ele sabia o que estava a caminho? Será que ele percebeu que os obstáculos empilhados contra seu trabalho eram simplesmente muito altos? Que o buraco da corrupção dentro do sistema financeiro do Vaticano era muito mais profundo?


Lembrem-se, também, como Professor Germano Dottori do Instituto de Estudos Estratégicos da LUISS-Guido Universidade Carli, em Roma, escreveu um artigo no início deste ano, demonstrando porque ele acredita que a alavancagem financeira foi armada por forças internacionais que acabaram culminando na renúncia do Papa Bento XVI:


Tanto o Governos italiano como o Papal foram simultaneamente atingidos por uma campanha escandalosa, coordenada, excepcionalmente violenta e sem precedentes, envolvendo até mesmo manobras mais ou menos nubulosas no domínio financeiro, com o efeito final culminando em novembro de 2011 com a saída de Berlusconi do Palácio Chigi e, em 10 de Fevereiro [sic - 11], de 2013, com a abdicação de Ratzinger. No auge da crise, a Itália viu progressivamente o seu acesso aos mercados financeiros internacionais fechados, enquanto o Instituto para as Obras Religiosas (IOR) [o Banco do Vaticano] foi temporariamente cortado do circuito do Swift 4. [Ênfase adicionada]


Um dos fatores menos conhecidos na abdicação do Papa Bento XVI é que, nos dias anteriores à sua declaração de renúncia, operações bancárias dentro do Vaticano tornaram-se de todo impossíveis. A situação foi resultado de uma pressão intencional feita contra o Vaticano -  Uma pressão que alguns dizem que foi usada para forçar o Vaticano a limpar sua corrupção financeira e cumprir com as normas bancárias internacionais, mas já outros acreditavam que equivalia a uma forma de chantagem contra a pessoa do papa.


Imagine o que deve ter sido fazer uma auditoria dessa confusão, descascando camada após camada de corrupção e ofuscação, para descobrir um  bilhão de euros onde não deveriam estar, e para tentar identificar os homens por trás dos bastidores, mexendo as cordas e desviando atenção.


Este ano, nós ouvimos até boatos de que o Vaticano tornou-se financeiramente insolvente. Rumores dizem que é por isso que a Igreja alemã, financiada anualmente pelos bilhões de euros recolhidos pelo imposto obrigatório à Igreja, tornou-se uma influência tão poderosa em Roma. Será possível que o fluxo do Reno que se derrama sobre o Tibre é transportado por uma torrente de liquidez?


Pergunto-me se alguma vez ficaremos sabendo.


Então não é preciso fazer muita ginástica mental pra se concluir que o cardeal Pell fez inimigos poderosos dentro do Vaticano na medida em que ele causava uma erosão neste sistema complicado e engessado da gestão financeira em busca de maior transparência e conformidade com as normas bancárias. Uma fonte que se comunicou comigo esta semana disse-me ainda que acredita que há aqueles que, depois de terem abusado dos privilégios dos seus ofícios no Vaticano para o ganho financeiro pessoal, estão ajudando a financiar a campanha contra Pell.


Boatos não passam de alegações até que a verdade venha à tona. Se Pell é culpado de abuso sexual, ele deve ser responsabilizado. Mas se esta é uma campanha para destruí-lo encabeçada por aqueles que tem muito mais a perder se o Vaticano fizer uma limpeza em sua gestão financeira, as pessoas com o conhecimento do que está acontecendo deveriam se apresentar para exonerar o homem.


De qualquer forma, a destruição do cardeal Pell parece ser nesta altura do campeonato, um fato consumado.


Fonte: One Peter Five - The destruction of Cardinal Pell

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