sábado, 24 de dezembro de 2016

Segundo Sermão no Natal do Senhor




Convite à alegria. Plano secreto de Deus para restaurar a dignidade do homem e humilhar o diabo

Caríssimos, deixemo-nos transportar de alegria e demos livre curso ao júbilo espiritual, porque raiou para nós o dia de uma redenção nova, dia longamente preparado, dia de felicidade eterna.

O ciclo do ano nos trás de volta o mistério de nossa salvação, mistério prometido desde o começo dos tempos e concebido no fim, feito para durar sem fim. Neste dia é digno que, elevando nossos corações, adoremos o  mistério divino, a fim de que a Igreja celebre com grande júbilo aquilo que procede de um grande dom de Deus.

O que Deus Todo-Poderoso e clemente, cuja natureza é bondade, cuja vontade é poder e cuja ação é misericórdia, desde o instante em que a malícia do diabo, pelo veneno de seu ódio, nos trouxe a morte, determinou, na própria origem do mundo, o remédio que sua bondade usaria para dar novamente aos mortais seu primeiro estado; ele anunciou, pois, à serpente a descendência futura da mulher, descendência que, com sua força, lhe esmagaria a cabeça altaneira e malfazeja, isto é, Cristo, que viria na carne, designando assim aquele que, ao mesmo tempo Deus e homem, nascido de uma virgem, condenaria, por seu nascimento sem mancha, o profanador da raça humana. Com efeito, o diabo, se gloriava de que o homem, enganado por sua astúcia, tinha sido privado dos dons de Deus e, despojado do privilégio da imortalidade, estava sob uma impiedosa sentença de morte; para ele era uma espécie de consolo em seus males ter encontrado alguém que participasse de sua condição de prevaricador; o próprio Deus, segundo as exigências de uma justa severidade, tinha modificado sua decisão primeira a respeito do homem, que ele tinha criado em tão alto grau de dignidade. Era necessário, portanto, caríssimos, que, segundo a economia do desígnio secreto, Deus, que não muda e cuja vontade não pode ser separada de sua bondade, executasse por um mistério mais oculto o primeiro plano de seu amor; e que o homem, arrastado para a falta pela astúcia do demônio, não viesse a perecer, contrariamente ao desígnio divino.

 Realização desse plano em Jesus, cujo nascimento singular traz o remédio a nossas almas enfermas e lhes dá vigor novo

 Caríssimos, tendo-se, pois, cumprido os tempos pré-ordenados para a redenção dos homens, Jesus Cristo, Filho de Deus, penetrou nessa parte inferior do mundo, descendo da morada celeste, sem deixar a glória do Pai, vindo ao mundo de modo novo e por um novo nascimento. Modo novo, porque, invisível por natureza, tornou-se visível em nossa natureza; incompreensível, quis ser compreendido; ele, anterior ao tempo, começou a estar no tempo; senhor do universo, tomou a condição de servo, velando o brilho de sua majestade; Deus impassível, não se  dedignou ser homem passível; imortal, aceitou submeter-se às leis da morte. Nascimento novo esse pelo qual ele quis nascer, concebido por uma virgem, nascido de uma virgem, sem que um pai misturasse a isso seu desejo carnal, sem que fosse atingida a integridade de sua mãe. Com efeito, tal origem convinha àquele quê seria o salvador dos homens, afim de que ele tivesse em si o que constitui a natureza do homem e estivesse isento daquilo que mancha a carne do homem. Porque o Pai desse Deus que nasce na carne é Deus, como atesta o arcanjo à bem-aventurada Virgem Maria:”O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso, o Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus”.

Origem dessemelhante, natureza comum: que uma virgem conceba, que uma virgem dê a luz, e permaneça virgem é humanamente inabitual e insólito, mas depende do poder divino. Não pensemos aqui na condição daquela que dá à luz, mas na livre decisão daquele que nasce, nascendo como queria e também como podia. Procurais a verdade de sua natureza? Reconhecei que humana é sua substância. Quereis saber sua origem? Confessais que divino é seu poder. Com efeito, Nosso Senhor Jesus Cristo veio para eliminar nossa corrupção, não para ser sua vítima; para trazer o remédio aos nossos vícios, não para ser sua presa. Ele veio curar toda enfermidade, consequência de nossa corrupção, e todas as úlceras que manchavam nossas almas; como ele trazia para nossos corpos humanos a graça nova de uma pureza sem mancha, foi necessário que ele nascesse segundo um modo novo. Foi necessário, com efeito, que a integridade do filho preservasse a virgindade sem exemplo de sua mãe, e que o poder do divino Espírito, derramado sobre ela, mantivesse inato esse recinto sagrado da castidade e essa mansão da santidade, na qual ele se comprazia; porque ele tinha decidido elevar o que era desprezado, restaurar o que estava quebrado e dotar o pudor de uma força múltipla, para dominar as seduções da carne, a fim de que a virgindade, incompatível, nas outras, com a transmissão da vida, se tornasse para as outras graças imitáveis ao renascerem.


 A astúcia do demônio frustrada

Mas, o fato, caríssimos, de Cristo ter escolhido nascer de uma virgem não parece ditado por uma razão muito profunda? Isto é, que o diabo ignorasse que a salvação tinha nascido do gênero humano e, escapando-lhe que a concepção era devida ao Espírito, acreditasse que não tinha nascido diferente dos outros aquele que ele não via diferente dos outros. Com efeito, aquele no qual ele constatou uma natureza idêntica à de todos tinha, pensava ele, uma origem semelhante à de todos; ele não compreendeu que estava livre dos laços do pecado aquele que ele não viu isentos da fraqueza da imortalidade. Porque Deus, que, em sua justiça e em sua misericórdia, dispunha de muitos meios para elevar o gênero humano, preferiu escolher para isso a via que lhe permitisse destruir a obra do diabo, apelando não a uma intervenção de poder, mas a uma razão de equidade. Porque, não sem fundamento, o antigo inimigo, em seu orgulho, reivindicava direitos de tirano sobre todos os homens e, não sem razão, oprimia sob seu domínio aqueles que ele tinha prendido ao serviço de sua vontade, depois que eles, por si mesmos, tinham desobedecido ao mandamento de Deus. Por isso não era de acordo com as regras da justiça que ele cessasse de ter o gênero humano como escravo, como o tinha desde a origem, a não ser que fosse vencido por meio do que ele mesmo tinha reduzido à servidão. Para esse fim, Cristo foi concebido de uma virgem, sem intervenção de homem; de uma virgem fecundada não por uma união carnal, mas pelo Espírito Santo. E, enquanto em todas as mães a concepção não se dá sem a mancha do pecado, essa mulher encontrou sua purificação no próprio fato de conceber. Porque onde não intervém o sêmen paterno, o princípio manchado de pecado não vem misturar-se. A virgindade inviolada da mãe ficou isenta da concupiscência e forneceu a substância carnal. O que foi tomado da mãe do Senhor foi a natureza, não a falta. A natureza do servo foi criada sem aquilo que fazia dela uma natureza de escravo, porque o homem novo foi unido ao antigo de modo tal que tomou toda a verdade de sua raça, excluindo o que viciava sua origem.

O atrevimento do demônio com relação a Cristo inocente o faz perder todo o direito sobre o conjunto dos homens


 Quando, pois, o Salvador misericordioso e onipotente dispunha os primeiros momentos de sua união com o homem, ocultando sob o véu de nossa fraqueza o poder da divindade, inseparável do homem que ele fazia seu, a perfídia de um inimigo seguro de si se viu frustrada, porque ele não pensou que o nascimento da criança gerada para a salvação do gênero humano não lhe estava sujeito como o estava o de todos os recém-nascidos. Com efeito, ele o viu vagindo e chorando, viu-o envolto em panos, submetido a uma circuncisão e resgatado pela oferenda do sacrifício legal. Mais tarde, reconheceu os progressos normais da infância, e até na idade adulta nenhuma dúvida lhe aflorou sobre o desenvolvimento conforme a natureza. Durante esse tempo, ele lhe infligiu ultrajes, multiplicou injúrias, usou de maledicências, calúnias, blasfêmias, insultos, enfim, derramou sobre ele toda a violência de seu furor e o pôs à prova de todos os modos possíveis; sabendo com qual veneno tinha infectado a natureza humana, ele jamais pôde crer que fosse isento da falta inicial aquele que crer, por tantos indícios, ele reconhecia por um mortal. Ladrão atrevido e credor avaro, ele se obstinou em levantar-se contra aquele que não lhe devia nada, mas, exigindo para todos a execução de um julgamento geral pronunciado contra uma origem manchada pela falta, ultrapassou os termos da sentença sobre a qual se apoiava, porque reclamou o castigo da injustiça contra aquele no qual não encontrou falta. Tornam-se, por isso, caducos os termos malignamente inspirados na convenção mortal, e, por causa de uma petição injusta, que ultrapassava os limites, a dívida toda foi reduzida a nada. O forte é atado com seus próprios laços, e todo o estratagema do maligno cai sobre sua cabeça. Uma vez amarrado o príncipe deste mundo, o objeto de suas capturas lhe foi arrancado. Nossa natureza, lavada de suas antigas manchas, recupera sua dignidade, a morte é destruída porque, ao mesmo tempo, o resgate suprime nossa escravidão, a regeneração muda nossa origem e a fé justifica o pecador.


 Exortação moral


 Tu, pois, quem que sejas, que te glorias piamente e com fé do nome de cristão, aprecia em seu justo valor o favor dessa reconciliação. Com efeito, a ti outrora abatido, a ti, reduzido a pó e cinza, a ti, a quem não restava nenhuma esperança de vida, a ti, pois, pela encarnação do Verbo, é dado o poder de voltar de muito longe para teu Criador; de reconhecer teu Pai, de tornar-te livre, tu, que era escravo; de ser promovido a filho, tu, que eras estranho; de nascer do Espírito de Deus, tu, que nasceras de uma carne corruptível; de receber por graça o que não tinhas por natureza; enfim, de ousar chamar Deus de Pai, se te reconheces filho de Deus pelo espírito de adoção. Absolvido da culpa proveniente de uma consciência má, suspira pelo reino celeste, cumpre a vontade de Deus, sustentado pelo socorro divino, imita os anjos sobre a terra, alimenta-te da força dada por uma substância imortal, combate sem temor e por amor contra as tentações do inimigo e, se respeitas os juramentos da milícia celeste, não duvides de quem, um dia, serás coroado pela vitória no campo de triunfo do rei eterno, quando a ressurreição preparada para os anjos te acolher para fazer-te participante do reino celeste.

Leão Magno – Sermões.




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